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Uma tarde com Pepe Mujica

Uma tarde com Pepe Mujica

| Por Pem Milan |

Passando umas férias em Montevidéu, fomos assistir a uma palestra do Pepe Mujica em uma universidade no centro da cidade. Sem criar muitas expectativas, fomos ao evento na esperança de, talvez, conseguir chegar perto dele. Me surpreendi pelo fato de um ex-presidente da república ser uma pessoa tão fácil de acessar, sem grandes esquemas de segurança e sem nenhuma pompa. Através da sua esposa, a senadora Lucía Topolansky, conseguimos agendar uma visita à casa deles no Rincon del Cerro, chácara que fica há uns 30 minutos do centro de Montevidéu.

Encontro marcado para um domingo à tarde para encontrarmos Pepe Mujica, ex-presidente do Uruguai, senador e guerrilheiro Tupamaro. Um marco muito importante em toda a história política da América Latina. Eu tava emocionado, nervoso: o que vamos encontrar? O homem do fusquinha azul ou outra história?

Chegando num bairro bem retirado, em uma chácarazinha de Montevideu, entramos por uma estrada de chão batido. Aquilo já me deu um… “Opa! Estrada de terra?” Ex-presidente? Ruelas? Chegando na casa, um porteiro nos encaminhou lá para dentro e, à medida que fomos nos aproximando da casa, eu levei um choque. Eu olhei e era algo como uma mistura de galpão com uma casinha campeira muito simples. Nesse momento, eu já disse “Uau!!!”

Deu um nó na minha cabeça, porque nós não estamos acostumados a isso. Nos aproximando mais da casa, havia na frente umas lenhas, umas batatas doces, aipim, caixas com coisas. Nada fino, nada chique e eu já me impressionei. E entrei. A casa é muito simples, muito simples mesmo! Até parece um galpão. Entramos na sala de uns 5mX3m e, num canto, perto da estufa estava sentado Pepe Mujica.

Olhei para uma sala cheia de livros, fui me aproximando, nos cumprimentamos, me sentei. Uma pessoa encantadora, já me apaixonei mais ainda pelo Seu Mujica que, além do fusquinha, sua vida é isso: uma roupinha simples, poída. Foi muito forte pra mim, porque não é só um fusquinha pra fazer propaganda…não! É a vida dele!

A profissão de Mujica é floricultor.
Durante décadas forneceu flores para as feiras e floriculturas.

À medida que a conversa se desenvolveu, cada vez mais, me espantava a humanidade dessa pessoa. Extraordinário! Pepe Mujica manteve a condição humana, a simplicidade humana com muita sabedoria. Alguém que buscou aquilo que queria da vida, que buscou algo muito mais do que o seu umbigo. Ele buscou algo maior. Pepe Mujica é uma referência mundial pra todo mundo, para todas as pessoas, um exemplo de vida. O presidente que abriu mão de 70% do seu salário como Presidente da República para a construção de casas populares durante o seu governo! Ele e sua esposa são um exemplo de simplicidade. Parece tão surreal que um ex-presidente da república e uma senadora vivam de forma tão austera – é como um desacato para toda a classe política. Com 88 anos esse cidadão, que consegue caminhar aos poucos, viveu coisas muito fortes – muito fortes mesmo – nunca escondendo e sempre assumindo quem ele é. Eu só posso perguntar pra vocês: sabe o que é uma pessoa ficar 12 anos presa? Não só presa como incomunicável. Durante 12 anos ele não conversou com nenhuma pessoa, ninguém! Os guardas não podiam conversar com ele, nada!

Quem vê o filme “Uma Noite de 12 Anos” vai ficar impressionado. Ele e outros 8 companheiros tupamaros foram tidos como reféns pelo regime militar e transferidos de presídio inúmeras vezes – o que impossibilitava o contato com os familiares e até mesmo com os advogados. Muitas vezes eles eram jogados dentro de celas que mediam um pouco mais de um metro, sem janelas, sem banheiro, sem água para beber. Ele teve que ter muita força pra não enlouquecer.

Uma das perguntas que eu fiz para ele foi: como ele conseguiu, depois de passar por tudo aquilo, manter essa sobriedade, essa humanidade, essa sensibilidade? Ele me olhou como quem diz: “Não tem resposta”. Depois ele disse que, na prisão, ele teve muito tempo pra pensar, refletir sobre as coisas.

O filme que retrata os 12 anos de Pepe Mujica na prisão

No filme “Pepe: Uma Vida Suprema”, ele fala que se não tivesse passado por tudo aquilo, ele provavelmente seria uma pessoa mais fútil, mais frívolo, mais superficial, mais imediatista, mais agressivo, mais seduzido pelo sucesso, mais rígido. Na prisão, tinha um carrasco que o perseguia muito e queria matá-lo de qualquer jeito. Esse homem, durante 12 anos, infernizou a vida do Mujica. Quando eu assisti o filme, eu queria trucidar aquele cara de tão desumano, tão cruel, torturador.

Então eu fiz essa pergunta bem clara pro Pepe: “E depois? Aquele sujeito que foi tão desumano contigo: tu viu ele outra vez? Foi atrás dele?” E o jeito dele simples de responder, disse: “Não, nunca mais dei bola pra isso.” E eu pensei cá comigo: “Bah! Se fosse eu!!! Depois de ter me tornado Presidente do Uruguai, eu iria atrás desse desgraçado!”

Veja o filme Uma Noite de 12 Anos!

Durante essas duas horas falamos sobre muitas outras coisas. Ele falou muito sobre a guerrilha urbana dos tupamaros no Uruguai. Como recentemente tínhamos visitado Cuba, perguntei a ele se ele teve a oportunidade de conhecer o Mausoléu de Che Guevara, um lugar muito bonito que me tocou profundamente nessa viagem à Cuba. Ele respondeu “Mas eu conheci El Che, estive com ele em duas ocasiões e também conheci o Mao Tse Tung quando fui à China.” É vinho de outra pipa! Ele ficou tentando encontrar o seu retrado ao lado de Mao quando os dois eram jovens.

Sua companheira Lucía Topolansky nos mostrou um presente que Pepe ganhou do Presidente da Bolívia Evo Morales: uma cópia perfeita do diário do Che na Bolivia. O diário veio embalado dentro de uma também réplica da bolsinha que Che Guevara usava quando foi capturado. Ter contato com tudo isso foi muito incrível, pois são todas pessoas que fizeram muita diferença na história da humanidade. Esse contato me fez sentir muito privilegiado e feliz.

Falamos ainda do consumo, de como está o mundo. Perguntei o que ele acha dessa situação que está a humanidade, da cabeça das pessoas. A gente acha que está todo mundo doido. Ele disse: “É o problema cultural. É mais fácil mudar a realidade material do que a cultura. O capitalismo gerou uma cultura consumista, que se precisa ir acumulando e acumulando, porque domina as emoções e não a cabeça”. Lucía interrompeu para complementar que leu um livro de Frei Betto que fala sobre isso, que geramos consumidores e não cidadãos.

Pepe Mujica e sua companheira de vida e de luta, Lucia Topolanski

Falamos de como tudo começa na família, a forma como tu é educado, onde o afeto é substituído por uma bala ou um brinquedo, gerando uma carência muito grande. Ele concorda e diz que, assim como vai a humanidade, o futuro dos velhos vão ser em casas de saúde atendidos por robôs.

Ele disse: “O consumo é uma doença. Se consome demasiado e, com isso, se sacrifica o meio ambiente. É muita roupa, muito sapato, muito carro, muitas coisas que duram pouco. Se desperdiça muita comida – se joga fora 25% a 30% da comida no mundo, mesmo nos paises pobres. E ainda tem gente que passa fome.”

Lucía disse: “Aqui em casa reciclamos tudo. Se sobra um pouco de comida, dou para Regina (vizinha) e a Regina me dá ovos. O milho que nós plantamos, fazemos a ração e, o que sobra, vai para a estufa, pra fazer o fogo pra nos aquecer. Não jogamos nada fora. Nós rimos porque nos olham estranho, como somos raros.”

Mujica em sua residência

“Eu tenho um fusca” disse ele em meio a risos. Ele conta que, quando se tornou Presidente, os vizinhos se uniram e compraram um fusquinha novo pra ele. E que, algumas vezes, recebeu propostas para vender o fusquinha. Ele disse “Não posso vender, como vou vender o fusquinha que me presentearam os vizinhos?!” Falamos muito sobre a nossa vida em comunidade, a forma como vivemos aqui na Comunidade Osho Rachana. Ele gostou muito, e disse que “pobre é quem precisa de muito, pobre é quem não tem comunidade.”

Então eu só posso dizer: que bom que exista Seu Pepe Mujica! Que bom que as pessoas possam reverenciar esse homem. Eu fui agraciado pelo prazer de ter uma conversa de 2h30min com ele e com sua mulher Lucía. Lucía também é uma pessoa incrível, com uma história fantástica, forte. Ela também foi presa durante esses 12 anos e passou pelos corredores da tortura.

Estamos na espera de recebê-los em Porto Alegre na nossa comunidade, porque eles gostaram muito da idéia. Quando ele vier receber o título de Honoris Causa na Universidade de Pelotas prometeu nos agraciar com uma visita e eu fico encantado com isso.

Pepe Mujica me anima a manter minha humanidade, a celebrar a vida, a buscar ser cada vez mais consciente e mais seguindo o meu coração. Obrigada pela tua existência, senhor Pepe Mujica!

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